quarta-feira, 31 de março de 2021

PERFIL DE UM BOLSOMINION

Reinaldo Lobo* É uma fruta rara nacional, como a jabuticaba. Só dá aqui e pode ter uma curta temporada, de única estação. O fascista caboclo, fascista sem o saber, e sem entender bem o que é isso, é um sujeito de vista curta e ignorância vasta. Acredita num mito, um ex-capitão expulso do Exército, um aventureiro que se arvorou em salvador do capital sem ter o talento organizador e motivador de um Hitler ou de um Mussolini.O bolsominion é, geralmente, um sujeito frustrado. Como seu líder, aliás. Queria ser rico, até tentou, procurou aproximar-se dos ricos. Imitou-os o quanto pôde. Foi adotando valores dos ricos, opiniões dos ricos, a ideologia deles, mas acabou no Irajá, atingido pelas agruras do capitalismo, por 2008, por uma falência inesperada, pelos ciclos do desemprego, pelo ódio à pobreza. Estacionou na proverbial classe média, no rol dos mais ou menos proprietários, ou entre os empreendedores necessitados de um empurrãozinho da política, cheios de dívidas com o Fisco e a legislação trabalhista. O perigo principal seria transitar para a mais baixa classe média, a C ou D, como aconteceu com alguns dos seus semelhantes. Esse é o seu maior terror: ter como destino final a proletarização. Reza para qualquer pastor, crê em qualquer Teologia da Prosperidade, e roga: valha-nos o dízimo de cada semana ou mês! Seu fracasso econômico e sua insegurança social são traduzidos em medo da insegurança pública e em horror da ascensão dos pobres, cujas conquistas de direitos passam a constituir uma séria ameaça. Como se não bastassem pobres e negros nos elevadores, domésticas com direitos trabalhistas, ainda têm a ousadia de frequentar aviões e aeroportos! Bolsominions são pessoas com medo e impotência diante do jogo socioeconômico. Muitas vezes seres que se sentem fracassados pessoalmente, sem perceber com clareza que o jogo não lhes pertence e que não são individualmente responsáveis por ele -- pelo menos não inteiramente, uma vez que os processos decisórios do sistema não dependem deles. O problema é que a ideologia dos bolsominions, copiada dos ricos e, sobretudo, dos ricos norte-americanos, diz que basta o esforço individual e uma dose de esperteza para vencer na meritocracia. Quando não vencem, eles se sentem humilhados e desprezíveis. Muitos deprimem ou reagem por meio do ódio, canalizado para algum inimigo em que está projetada a mácula da inadequação e da traição: os políticos corruptos, por exemplo. Desde 2013, quando o velho tema da direita brasileira – a corrupção- vestiu a cara da Lava Jato e os conservadores ganharam, pela primeira vez, um público e muitos votos virtuais, acionados ao mesmo tempo por uma imprensa privada sem medo de localizar os alvos – Lula, o PT e os “inimigos corruptos”—os bolsominions começaram a sair da toca, antes mesmo do “fenômeno Bolsonaro”. Estavam prontos para ganhar as ruas com o som e a fúria do seu ódio. E ainda hoje não abandonaram sua violência e fanatismo. Na sua simplicidade intelectual, o adversário político não merece sobreviver, mas deve desaparecer, ser eliminado, preso ou morto. Não há adversários, como é a regra numa democracia, que “subsistem” ou “sobrevivem” , como diz um juiz do Supremo Tribunal Federal, após o embate político nas instituições do Estado ou nas eleições. Como se vê, o bolsominion, cujo caráter antecede o próprio Bolsonaro, não é exatamente um democrata. É um adorador da força militar e bruta, que lhe falta no jogo social e econômico. Crê que essa força deve ser voltada contra os mais fracos do que ele se acha, os vulneráveis, para que lhe sobre espaço no mundo almejado dos ricos, que, na verdade, nunca lhe pertencerá. O bolsominion, por mais radical que seja, não passa de um coadjuvante da cena social e política. Os sujeitos da ação e dos protocolos do poder são outros. Ele é a massa de manobra até mesmo de seu líder caricato, produto da farsa derivada de uma imitação da tragédia fascista do passado. Hoje, muitos bolsominions sentem-se traídos pela Lava Jato, pois são aqueles que acreditavam que a Força Tarefa não pararia e iria remover “todos os corruptos”. Mas ela parou quando tirou Lula da cena eleitoral e o seu cabeça, Sérgio Moro, foi para o governo sem nenhum pudor, após ajudar a eleger o ex-capitão de extrema direita. Não são ingênuos, mas radicais. São os “patriotas” da hipocrisia da direita pela Lava Jato, muitos deles comprometidos com a corrupção. Não surpreende que vários dos bolsominions descobertos com a boca na botija recentemente, em várias áreas da economia e da vida pública, eram corruptos engajados na luta anticorrupção, como os reis das rachadinhas que os lideram. Nunca foi tão atual a frase atribuída ao literato inglês Samuel Johnson, dita presumivelmente no dia 7 de abril de 1775, lá se vão 246 anos: “O patriotismo é o último refúgio do canalha”.

segunda-feira, 1 de março de 2021

HISTÓRIA DA VIRILIDADE

Reinaldo Lobo* Já não existem “homens de verdade” na nossa civilização? Corre um boato de que as mulheres se queixam da falta de virilidade masculina, ao mesmo tempo em que desenvolvem sua própria força e desejam homens cada vez mais femininos, sensíveis, com traços outrora semelhantes aos delas próprias. Seria a invenção do “Viagra” um sinal inequívoco e derradeiro da decadência dessa virtude festejada como um ideal durante séculos: a virilidade? Um grupo de antropólogos, historiadores das mentalidades, filósofos e psicólogos comandados por franceses buscaram responder a perguntas como essas numa obra monumental em três volumes, intitulada “História da Virilidade”, divididos em pesquisas sobre as “Origens”, o “Triunfo” e a “Crise” dessa ideia construída durante séculos para justificar a dominação masculina. Usando métodos históricos e críticos rigorosos, essa equipe produziu uma pesquisa bastante séria sobre um fenômeno negligenciado e escondido, até porque a ideologia masculina dominante não permitia enxergar plenamente a sua natureza. Esse assunto proibido, que poderia pôr em dúvida o “macho ocidental”, ainda que seja um tema interessante e curioso, só agora começa a ser desvendado em todos os seus ângulos e momentos históricos, justamente no “crepúsculo do masculino” outrora cantado em prosa e versos. Há um fio condutor nos três volumes desses franceses inspirados em Michel Foucault, Phillipe Ariès e a nova História “das mentalidades”. Consiste na hipótese de que a “capacidade” ou “virtude” chamada de virilidade ao longo do tempo foi uma construção psicossocial de um conceito ideológico que deu suporte à dominação masculina e ao patriarcalismo. É preciso deixar claro que a virilidade não se reduz ao sexo, nem apenas à diferença de gênero, mas envolve atributos como coragem, ousadia, belicismo, caráter e até habilidade política. E também potência sexual, é claro. O que se originou um pouco antes da Grécia e Roma, na Antiguidade clássica, passou pelos padres guerreiros das Cruzadas e os Templários misóginos, chegando até aos cowboys e cavalheiros do século 19, período do “triunfo”, veio desembocar na decadência da virilidade contemporânea, dos séculos 20 e 21. Com oscilações e variações, o fio condutor do ideal de virilidade é o poder. O “machismo” é só uma manifestação exacerbada e meio patológica do desejo de poder, que, por sua vez, esconde o temor da “desvirilização” e da impotência. Uma espécie de machismo estrutural permeia até mesmo os gestos afetados das cortes europeias no advento da modernidade. A promiscuidade masculina também revela uma necessidade de corroboração do poder sobre as mulheres, as relações sociais e a posse das coisas. Os autores dessa trilogia foram bastante influenciados pela psicanálise, sobretudo em capítulos como “Antropologias da virilidade: o medo da Impotência”, no qual, ao fim e ao cabo, o que se demonstra, baseado em Lévy Strauss e em François Heritier, é que a hierarquia estabelecida entre os sexos e a constituição das regras de comportamento sexual são uma complexa operação movida para evitar o medo à castração, diagnosticado por Freud. Em suma, a crença na virilidade como uma “superioridade” masculina é um mito. Está evidente, como sempre ,aliás, que essa crença se baseia na insegurança e no desejo de poder, este muitas vezes frustrado no mundo contemporâneo. Foi -- como dizem nossos autores-- sobre um ideal de força física, de potência sexual, de domínio e de coragem que se construiu historicamente na cultura o que se passa como a “natureza” do homem. Essa capacidade “natural” justificou por séculos a submissão das mulheres, “de natureza mais fraca”, e a repressão a todos os modos de sexualidade e de identidades que não se ajustavam ao modelo masculino. São famosas e já divulgadas pelas feministas as representações “científicas” da mulher como um corpo inacabado de homem, a figura biológica e socialmente dominante. Hoje, porém uma “crise se propaga no império do macho”, como diz o último volume da trilogia: os massacres guerreiros apagaram a imagem dos heróis, a variação cíclica das depressões econômicas minou o orgulho do trabalhador, o consumo e o crescimento dos conformismos esgotou o gosto pelas aventuras e a ousadia. O progresso das mulheres e do feminismo também têm amedrontado os homens, a igualdade maior entre os sexos e os protestos femininos estão contestando velhos privilégios masculinos e as violências impossíveis de aceitar. Não sabemos o que virá, se o matriarcado ou uma plena diversidade e democracia sexual (como propõe a “filosofia Queer), mas não há dúvida de que os homens estão sendo postos, finalmente, no seu devido lugar.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

UM PSICOPATA NO PODER

Reinaldo Lobo* O maior perigo de um presidente psicopata é a disseminação da irresponsabilidade, do desrespeito pelos outros, do pouco caso com a vida, do crime, da mentira e da destruição da Lei por toda a sociedade. Ele é um mau exemplo. Como autoridade, consagra a ideia de que a única legitimidade possível é pela violência, o desrespeito e a força bruta. Jair Bolsonaro tem vários traços de uma personalidade psicopática ou, mais precisamente, possui uma mente delinquencial. Isso mesmo: uma pessoa antissocial e nociva para a convivência. Manipulador e narcisista, portanto, extremamente egoísta, onipotente sem empatia pelos outros, aproveitador, arrogante e estúpido, incapaz de reconhecer o sofrimento alheio e coletivo, sem generosidade com quem não pertença ao seu círculo de semelhantes, vivendo em estado esquizoparanóide quase permanente, impossibilitado de assumir os próprios erros e sempre procurando alguém para botar a culpa. Como é possível que um presidente votado por quase 60 milhões de cidadãos de uma sociedade organizada tenha escapado ao critério seletivo de tanta gente? São todos cegos, insensíveis e ingênuos? Houve manipulação ideológica? Há quem diga, entre os cientistas políticos, que ele é um caso de “presidente acidental”, resultado das circunstâncias políticas e sociais de um período de crise. Não dá para acreditar totalmente nisso, ainda que, em parte, haja alguma verdade na “acidentalidade” do fenômeno Bolsonaro. A “onda Bolsonaro” seria o fruto de um vácuo que surgiu após o descrédito parcial do PT (não foi total, pois o candidato petista teve quase 50 milhões de votos), acrescido do lance da facada (até agora obscuro) que provocou certa comoção e dó por parte dos eleitores. Além disso, ajudou-o a evitar os debates que mostrariam melhor o seu perfil íntimo e sua enorme ignorância cultural e dos problemas do País. Também escondeu informações como sua ligação estreita com milicianos cariocas e o crime organizado. Os candidatos adversários tiveram pudor de expor tudo, pois seria atacar uma vítima de uma “tentativa de assassinato”. O fato é que milhões se identificaram e muitos ainda se identificam com os traços violentos e delinquenciais do candidato, hoje presidente. Teremos no Brasil uma multidão de macunaímas sem nenhum caráter? Parece. Uma personalidade como a de Adolf Hitler, por exemplo, pode passar despercebida em seu caráter deletério por algum tempo, em função da sedução que promove demagogicamente, prometendo o paraíso e entregando algo. Hitler era um ressentido, um artista fracassado, que não conseguiu passar no vestibular para a Academia de Artes, mas com um dom de oratória e alguma criatividade meio delirante. Ele tinha vergonha da origem humilde de seus pais e da sua condição de cabo na hierarquia militar durante a Primeira Guerra. Mas era mais inteligente do que o nosso neonazista caboclo e sabia organizar um movimento, criando uma estética (discutível) própria. Bolsonaro é um ressentido que fracassou na carreira militar, sem nenhum talento criativo. Também tinha vergonha de sua família humilde do interior em São Paulo e esconde suas origens. O seu ferimento narcísico por ser expulso do Exército gerou certamente nele um furor, escondido pela carreira política, igualmente medíocre e, ao que tudo indica, corrupta. Tem em comum com Hitler a violência, o ódio a incapacidade para sentir a dor do outro. Adotou uma ideologia barata de caserna, que lhe permite sair em defesa da tortura e do assassinato de adversários políticos transformados em inimigos. Decidido a ganhar dinheiro na política, aliou-se ao que havia de pior no Rio de Janeiro e no resto do País, como o paulista Paulo Maluf, outro famoso por sua falta de escrúpulos e sua “cara de pau”. O aspecto moral da psicopatia não é relevante em nada para o próprio psicopata. Não se vê como um doente grave, na verdade um vírus ameaçador para o tecido social. Sua ambição é se aproveitar da sociedade em benefício próprio. E só. Mas no caso de Bolsonaro há um particular cinismo em tratar a morte e a doença dos outros, pois sua ação é pautada pela destrutividade. Ele é radicalmente contra a solidariedade e a própria associação de cidadãos livres. O mundo está dividido entre ele e seus filhos, de um lado, e os inimigos do outro. O fascínio por armas e meios de destruição, além de ser lucrativo junto ao lobby dos fabricantes (“bancada da bala”), é algo que ultrapassa o militarismo. É uma identificação com os grupos neonazistas e suprematistas brancos norte-americanos. Ele imita o que julga ser a legitimidade da força bruta e da imposição de poder dos racistas. O psicopata pode ser, como dissemos, um perigo para o conjunto da sociedade, isto é, um sociopata. O psicopata é um sujeito frio, indiferente à dor alheia (“E daí? O que eu posso fazer?”, diz o presidente diante de mais de 200 mil mortos) e, muitas vezes, é um misógino. Mas nem todo psicopata é um perigo explícito para a sociedade como um todo. Muitos exercem suas características em âmbito restrito, socialmente disfarçados, comportam-se cínica e agressivamente no casamento ou no trabalho, mas não atingem o poder e o alcance de um Hitler, de um Trump ou de um Bolsonaro. O psicopata é, antes de tudo, um delinquente potencial. Mente sobre fatos da realidade sem nenhum pudor. Sua relação com a Lei é para negá-la, contorná-la, destruí-la ou usá-la a seu favor. Muitas vezes, é para usá-la contra alguém. No caso de Bolsonaro, temos um presidente de inclinações delinquenciais que nega a destruição provocada pela pandemia, um genocida, e usa o poder para livrar da cadeia seus filhos identificados com o pai e vai fazer qualquer coisa para manter o poder. Até mesmo provocar um golpe ou, como já preconizou, uma guerra civil. O que um psicopata mais teme é a fraqueza, ou melhor, ter a sua fragilidade revelada. No fundo, é um fraco. Daí, as bravatas e a exaltação da “masculinidade”, que quer provar com pistolas, bombas ou Medidas Provisórias presidenciais.

domingo, 27 de dezembro de 2020

O QUE É SER DE ESQUERDA HOJE?

Reinaldo Lobo Ser de esquerda é ter um projeto de emancipação humana, de combate à injustiça e à desigualdade. Emancipação é sinônimo de fim da escravidão, da submissão e da exploração. Significa, portanto, liberdade. Ora, dirão os da direita: onde foi que esse projeto se realizou desde que o anunciaram, lá atrás, na Revolução Francesa, em 1789, com os jacobinos? Os direitistas proclamam que sempre houve poder, exploração e injustiça na História e sempre haverá. É da “natureza humana”, dizem. E concluem: já que isso é fatal, inevitável, por que não podemos ser nós mesmos os exploradores? O tradicional cinismo da direita se contrapõem “às ilusões utópicas da esquerda”. Como todo projeto político, houve desvios e excessos perigosos na esquerda, a começar pelos jacobinos franceses, que adotaram o Terror como forma de poder. Os vícios da esquerda foram notáveis, como o totalitarismo stalinista antes e depois da Segunda Guerra Mundial e a esclerose do poder de uma burocracia tão detestável quanto as classes dominantes do capitalismo, com seu colonialismo, escravidão e privilégios de uma minoria. Não é o caso, aqui, de justificar ou depurar esses erros graves impostos, em parte, pelas pressões da guerra e da luta de classes, mas de ressaltar a mudança na ideia de esquerda ao longo das últimas décadas no mundo. Antes, quando a URSS representava-- sobretudo após a vitória sobre o nazismo na Segunda Guerra--, a esperança de um futuro socialista para o mundo, o núcleo duro da esquerda era concentrado no marxismo e no leninismo, que se pretendiam “socialismo científico”. A História era vista como determinada racionalmente por etapas sucessivas, onde o objetivo final seria o comunismo, com a reconciliação das classes e o fim da opressão e da desigualdade. O comunismo nunca existiu dessa maneira em parte alguma, talvez apenas em algumas tribos originárias em algumas partes do mundo. A esquerda clássica oscilou entre a socialdemocracia adesista e o poder leninista de uma “intelligentsia” dirigista, mas os valores principais permaneceram intocados, ainda que sempre referidos ao marxismo. Hoje, tem havido mudanças consideráveis na ideia de esquerda. Até mesmo o marxismo “científico” foi posto em questão. Um marxismo que não é vulgar, como o da chamada Escola de Frankfurt, abriu caminho para outras reflexões, como o da escola francesa anti-totalitária de Cornelius Castoriadis, Claude Lefort e Edgar Morin, inspirada mais na psicanálise, na filosofia e na antropologia do que em uma economia dita científica. Uma pergunta comum hoje: os movimentos ambientalista e o feminista são de esquerda? Minha resposta: são, na medida em que colocam a sociedade capitalista em questão e também representam valores opostos ao conservantismo e ao cinismo da direita, sobretudo o neoliberal em voga. Ser de esquerda, atualmente, é ser anti-racista, anti-sexista, respeitar os LGBTQ+ e lutar contra a violência repressiva no interior da sociedade. Durante o movimento Occupy Wall Street as ruas de Nova York se encheram de gente de esquerda que nada mais tinha em comum com a esquerda autoritária do passado comunista-leninista. Foi um exemplo de movimento reativo às crises capitalistas sucessivas que provocam desemprego, miséria nas cidades e falências de agricultores no campo, que destroem famílias e futuros. A esquerda deixou de ser perfeccionista e não propõe mais revoluções que nos levem ao marco zero da sociabilidade, aprendeu com seus erros e o famoso dilema reforma X revolução vai sendo substituído por sucessivos avanços na cultura e na sociedade, um processo de transformações que não se pretendem “graduais” nem privilegiam a presença do Estado como chave para tudo, mas recorrem a laços comunitários como cooperativas e associações de cidadãos. Movimentos como o MST e o MTST, dos sem terra e dos sem teto, são modelos de uma onda constante de organização no interior da sociedade civil. Essa mutação não implica abandonar os valores de emancipação humana e de justiça. O grande desafio da esquerda clássica sempre foi conciliar justiça e liberdade, mas isso pode estar sendo tramado e resolvido no interior da própria esquerda quando discute as noções de representação política, em crise no mundo todo. Ser de esquerda hoje significa ter um conjunto de valores éticos opostos ao cinismo e ao “realismo” da direita, cujo compromisso com preconceitos milenares e com a opressão a torna sempre suspeita ao defender a democracia. O projeto de emancipação humana vem desde a Grécia antiga, passa pela Revoluções francesa e russa, desemboca nas ruas de Paris em 1968: “A imaginação ao Poder” e “Sejam realistas: peçam o impossível”. Tem algo de utópico? Tem, mas seu movimento inexorável é bastante real.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

NOVA ESQUERDA EM SÃO PAULO Reinaldo Lobo* “Uma nova esquerda está surgindo em São Paulo”, sentenciou Franklin Martins, o ex todo poderoso da comunicação do governo Lula e ex líder guerrilheiro durante a Ditadura. Sua opinião é importante, pois tem o pleno respeito da esquerda histórica e do PT. A frase de Martins é verdadeira. Uma nova estrela surge em SP: Guilherme Boulos (38 anos), do PSOL (Partido do Socialismo e Liberdade), que escolheu a veterana Luíza Erundina (86 anos) para sua candidata a vice para a Prefeitura. Seja qual for o resultado das eleições de domingo, a dupla Boulos-Erundina sai de uma campanha vitoriosa por chegar bem ao segundo turno na cidade mais conservadora do País. São Paulo é o fulcro do capitalismo brasileiro e, como dizia Jean Paul Sartre numa viagem ao Brasil, a esquerda deveria conquistar primeiro São Paulo e não as serras e florestas como fizeram Fidel Castro e Guevara em Cuba. Há muito tempo, os paulistas representam o que há mais capitalista no País, expandindo a partir deles a indústria moderna, as tecnologias, o agronegócio e a inovação. É onde estão as concentrações de serviços, as sedes das filiais das multinacionais, as finanças e os bilionários nacionais. Não é só uma questão de quantidade, mas do núcleo qualitativo do capital. Por isso mesmo, o candidato Boulos insiste em dizer que a cidade mais rica da América do Sul tem as contradições sociais e econômicas mais gritantes do regime capitalista brasileiro. Não se pode esquecer que as massas de trabalhadores da grande indústria e dos seus sindicatos foram a base paulista do movimento que confrontou a Ditadura e o patronato nos anos 70, dando origem ao Partido dos Trabalhadores. Ocorreu um fenômeno de burocratização tanto dos sindicatos quanto do PT ao longo dos anos e suas bases na região do ABC foram deslizando para outras direções políticas, inclusive o populismo da extrema direita bolsonarista. Muitos atribuem o que aconteceu à ausência da figura carismática de Lula no jogo direto da política, em face de sua exclusão pela Operação Lava Jato e a perseguição movida pelo juiz Moro, de extrema direita. Isso é verdade apenas em parte. Ocorre que surgiu uma nova geração de trabalhadores, hoje voltada também para os serviços da área eletrônica e outras, que não tem a memória dos idos da Vila Euclides e da fase heroica do PT. Essa é uma geração de jovens ameaçados de desemprego crescente pela políticas neoliberais e sedenta de um futuro com mais esperança. Boulos e o PSOL aparecem com mais relevância aos olhos dessa juventude, inclusive da universitária, de classe média, que está também saturada de populismo e da política tradicional. A sinceridade de Boulos em combater a pobreza diretamente, com ações concretas, seu apelo à periferia e a uma certa virgindade em relação à política tradicional, dão-lhe uma legitimidade inédita desde Lula no ABC. O discurso dessa nova esquerda lembra muito, na verdade, a autenticidade de um Pepe Mujica, o do “fusquinha”, o ex-guerilheiro uruguaio que foi um presidente original em seu país, reformador sem violência, mas implacável com a corrupção e em sua adesão à classe trabalhadora. A simplicidade de vida e sua ausência de ódio, próxima do exemplo de Mandela, encantou tanto a esquerda quanto a direita, que ainda hoje lhe rende homenagens e respeito. Valores como humanidade, empatia com o sofrimento alheio, respeito à diversidade e elogio à liberdade fazem dessa nova geração de esquerda realmente potente em sua comunicação com os desfavorecidos e a juventude. São valores autenticamente de esquerda e não apenas promessas de benefícios econômicos ou de paternalismo vazio. Pouca gente notou com clareza que as propostas de Boulos e da experiente Erundina são voltadas especificamente para São Paulo, mas inspiradas também nos modelos de cidades mais modernas do planeta, estabelecendo prioridades ecológicas e gerando espaços de convivência democrática. Por exemplo, São Paulo tem um sistema de coleta do seu enorme volume de lixo completamente viciado pelo domínio de máfias que giram em torno da Prefeitura. Essa nova esquerda propõe combater essas máfias e instaurar um sistema de reciclagem --sempre prometido e sempre adiado--, inspirado em cidades como Barcelona, Amsterdã, Oslo e outras. Esse é um exemplo de programa que pode ser aceito por qualquer eleitor, de direita ou de esquerda, pois remete à simples modernização, combatendo os perigosos aterros ou “lixões”. A direita se engana em rotular a nova esquerda paulistana, que já ganhou alcance nacional --como fez um “cientista político” da TV Bandeirantes-- como estando apenas “à esquerda do PT”. Não percebeu, em seu preconceito, que essa onda emergente na maior cidade sul-americana representa uma conciliação da esquerda com a modernidade e a superação de um passado conciliatório e proto-populista. Se Boulos e Erundina forem eleitos haverá muitas surpresas no País, não só na liquidação do bolsonarismo nefasto e similares, mas também na forma de administrar atualizada e ousada. Isso, sem falar no clima de humanização, no fim do espetáculo de gente procurando comida nos sacos de lixo e dormindo nas calçadas. Franklin Martins, que já foi porta-voz do PT e, antes, âncora da Rede Globo, tem toda razão: essa “nova esquerda” é mesmo nova. Está chegando para ficar, pois não tem como objetivo apenas criar consumidores e possui como prioridade algo valioso e insubstituível: a dignidade humana.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

UM FIO DE ESPERANÇA

UM FIO DE ESPERANÇA Reinaldo Lobo A perigosa e doce comunista Manuela d’Ávila, de rosto angelical e inteligência aguda, ameaça vencer a eleição municipal em Porto Alegre, cidade importante. O não menos perigoso socialista Guilherme Boulos, simpático e muito articulado, não para de crescer em São Paulo, cidade ainda mais importante, capital da classe média branca. Esse último, ao lado da íntegra nordestina Luísa Erundina, mais parece um José Mujica jovem, residente na periferia, no Campo Limpo, e dono de um Celta surrado. Ameaça sobretudo os candidatos tucanos e bolsonarianos, como o picareta Celso Russomano à frente. O crescimento das duas candidaturas de esquerda empolga principalmente a juventude, que se desdobra nas redes sociais fazendo campanha para elas. Ambas têm também o apoio de artistas renomados, como Caetano Veloso e Wagner Moura, o que está deixando alguns juízes reacionários (não são poucos sob o regime da família Bolsonaro) enlouquecidos com a possibilidade de a esquerda voltar a governos estratégicos dentro das próprias leis que essas autoridades manipulam. Tanto a gaúcha Manuela quanto o paulista Boulos são lideranças emergentes que têm a vantagem da transparência em suas fichas corridas, da honestidade e da confiança da parte menos alienada da população pobre. No Rio Grande do Sul, ainda que seja um Estado conservador e racista, há também uma tradição de esquerda e de combatividade desde os tempos de Leonel Brizola, passando pela governança de trabalhistas e até de trotskistas em Porto Alegre. O fato de Manuela estar no PCdoB não assusta os mais pobres, que querem trabalho e resultados sociais. Quanto à classe média branca, na sua grandiosa ignorância e mesquinhez política, ainda não se deu conta de que o PC do B é o menos comunista entre todos os partidos de esquerda, pois está na “linha chinesa”, sendo a China Comunista, neste momento, um dos países mais capitalistas do planeta, ainda que intitule seu regime de “socialismo com características chinesas”. O partido de Manuela e do governador do Maranhão, Flávio Dino, é desenvolvimentista, defende um capitalismo sob o estímulo e comando do Estado. Seus líderes não hesitam em propor um “socialismo com características brasileiras”. A estreiteza das classes dominantes brasileiras e dos tacanhos militares submissos aos EUA do presidente norte-americano Trump, é o que faz de Manuela uma perigosa ameaça à estabilidade do capitalismo brasileiro. Dentro das instituições democráticas, sem o poder absoluto do Estado como na China, os comunistas do PC do B são mais moderados do que o PT e até mesmo alguns personagens do MDB ou do PSDB. Já Boulos e o PSOL são diferentes, pois representam movimentos sociais e estão à esquerda do PT. São autênticos socialistas vindos de baixo para cima, das ruas e favelas do Rio e São Paulo, e de frações descontentes do próprio PT. Desconfiam da pureza ideológica dos petistas e da liderança zigzagueante de Lula. Detestam a corrupção e quase fazem votos de pobreza como alguns socialistas uruguaios. O ídolo de Boulos é Mujica, que tem um Fusca, mora num pequeno sítio nos arredores de Montevidéu, saiu pobre da presidência e hoje faz pregação socialista pela mídia, além de defender a liberdade e os direitos à candidatura de Lula. Um jornalista conservador, um amigo inteligente já falecido, Sandro Vaia, costumava dizer sarcasticamente que “o PSOL é o PT antes de crescer”. Tirando o sarcasmo, há uma verdade nisso. Como todo movimento vindo das classes sociais oprimidas e de intelectuais de esquerda, há um risco de que o partido de Boulos possa se burocratizar e envelhecer, como ocorreu com o PT . Por enquanto, Boulos representa, junto com Manuela, o fio de esperança de uma esquerda renovada e crescente. Será difícil Boulos vencer em São Paulo, cidade que já foi a mais malufista e sede das passeatas dos camisas amarelas que ajudaram a derrubar a democracia no golpe jurídico-parlamentar de 2016. Mas já é algo promissor o simples fato de sua candidatura estar em curva ascendente, ameaçando os candidatos coniventes com o golpe e/ou com o bolsonarismo. Alguns eleitores arrependidos de terem votado em Bolsonaro não hesitam em dizer que votarão na oposição para “contrabalançar o poder do louco de Brasília”. A esperança não é só para a esquerda se robustecer, mas a oposição em geral ao governo do bizarro neofascista de Brasília e seus aliados, agora ligados também ao Centrão corrupto, de onde, aliás, veio esse ser originado, em última instância, nos porões da Ditadura de 1964-1985. Naquele passado, as eleições municipais, geralmente menos importantes do que as gerais que foram proibidas, ganharam algumas vezes a grandeza de um protesto contra a Ditadura. Hoje, temos uma espécie de ditadura civil-militar corrupta disfarçada de “novidade” híbrida. Está cada vez mais claro que esse governo não veio para acabar com a corrupção, mas para instaurar a própria política corrupta das elites. As próximas eleições municipais podem servir de manifestação das forças e setores que não estão coniventes com a destruição do Meio Ambiente, dos direitos humanos e sociais. Podem ser um fio de esperança não só para alguns, mas para todos os que querem impedir a destruição completa da nação brasileira.

sábado, 19 de setembro de 2020

HISTÓRIA MAL CONTADA

Reinaldo Lobo A teoria é simples: o impacto das novas tecnologias eletrônicas e a mundialização das comunicações provocou uma mutação profunda nas sociedades e decretou o fim dos embates sociais e inaugurou a “Era dos Conflitos Culturais”. Alguns sociólogos, historiadores e filósofos “pós modernos” declararam o “fim da História”, mas não apenas isso. Procuraram demonstrar a impossibilidade de pensar a História e a sociedade com conceitos políticos e econômicos, como se fazia nos últimos dois séculos. A temática e os instrumentos para estudar o assunto, dizem eles, são as diferenças culturais, as religiões e as questões das minorias. Em parte, eles têm razão. A chamada sociedade industrial clássica não existe do mesmo modo. O panorama de fábricas com as chaminés fumegantes e os altos fornos não existe mais. Hoje, existe a automação e a produção se faz em alta escala por máquinas sofisticadas sem um intenso trabalho humano. A velocidade e o consumo em alta escala dão o tom de uma meta imaginária de “crescimento infinito” e “consumo sem limites”. De fato, vieram à tona as questões das minorias que participam disso sem uma inclusão clara e sem reconhecimento social, gerando tensões culturais e lutas de princípios. Esse tipo de pensamento, contudo, desvia a atenção e desarma a inteligência sobre os conflitos sociais que persistem, como a enorme desigualdade social em todas as partes do mundo e, inclusive, entre os mundos, isto é, o desenvolvido e o dos países subdesenvolvidos ou emergentes. Não foi por caso que essa teoria simples foi elaborada na Europa e nos Estados Unidos. Mesmo nos países de seus autores, como os EUA, a França e a Inglaterra, a desigualdade não só persiste como tem aumentado bastante, como mostram as pesquisas recentes sobre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) dessas regiões. Os teóricos que declaram o “fim do social” descrevem uma paisagem de uma revolução tecnológica da informação cujos efeitos sociais e culturais são visíveis por toda parte, sem dúvida. O aspecto social é o desemprego provocado pela automação, que é negado ou omitido. O cultural é o surgimento de novas subjetividades “informatizadas”: já se fala em uma geração “digital born”, nascida na era digital. O ponto em que mais insistem, contudo, é a ausência de todo determinismo tecnológico nessa sociedade pós industrial da informação, que a separaria claramente da sociedade industrial moderna, onde a divisão técnica do trabalho não podia ser separada das relações sociais de produção. Teria surgido uma situação nova em função da grande flexibilidade dos sistema de informação. Haveria, então, uma espécie de sistema que funcionaria no ar, sem qualquer base social imediata, pairando acima das instituições, dos grupos e mesmo dos estados-nação, o que possibilitaria uma perfeita “globalização” da economia, restando às sociedades locais apenas a função de regular seus conflitos culturais: lugar da mulher, das identidades locais e de raça. Os argumentos desses teóricos parecem fortes, mas não dão e não deram conta de algumas perguntas igualmente simples: o modo de produção capitalista, a reprodução do capital, desapareceu ou apenas mudou de forma? A apropriação da riqueza e da propriedade, inclusive da propriedade intelectual dos “sistemas flexíveis”, mudou essencialmente na sociedade da informação? As crises capitalistas cíclicas se alteraram com a informatização ou apenas se agravaram com as concentrações e manipulações do capital financeiro mundial por meio da flexibilidade e da velocidade? O grande equívoco desse tipo de pensamento “pós moderno” não é a crítica da modernidade ou a constatação de que houve mudanças nas sociedades, mas o exagero em adotar uma novo modelo de interpretação, um tanto acrítico, do que veio com a virada para o século XXI. A relativa separação entre forças produtivas e relações de produção não resolveu os antagonismos sociais. Ao contrário, produziu uma imensa multidão de excluídos e de refugiados. Os computadores funcionam bem na Europa assim como na África, mas isso não tirou os africanos de sua condição social e econômica difícil. O desenvolvimento desigual e combinado continua mantendo a América Latina no “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, como diziam o historiador da economia e sociólogo germano-americano Andrew Gunder Frank e o economista brasileiro Ruy Mauro Marini, autores da “teoria da dependência” do capitalismo. O que os pós-modernos exageram é o peso da tecnologia, sem considerar as nuances entre conflitos sociais e culturais. Dizem que um mundo acabou e começou outro, como se essa evolução fosse um simples milagre, não o resultado de inúmeras e complexas contradições e complementariedades no interior dos sistemas sociais. Deixam escapar toda uma dimensão, a reprodução do capital, e toda a esfera social, onde as classes subsistem e buscam sobreviver dentro do regime capitalista que está em busca do crescimento infinito. O raciocínio dos sociólogos, historiadores e filósofos “pós modernos” é reducionista e, às vezes, deslumbrado com um “admirável mundo novo”. Não é por acaso que alguns deles vendem uma “filosofia da felicidade”, aproveitando, aliás, a “flexibilidade” dos novos meios de comunicação, que aceitam muitas coisas.